sábado, 23 de junho de 2012

Carta aberta ao guri que fui

Moises Silveira de Menezes


Quando vim de lá trouxe quase tudo.
Tudo que cabia na velha mala sebruna e 
Nos anseios de horizontes largos.

Ficou um potro de cachos negros,
Ausentado de quem lhe cavalgava al pedo, ao sabor do vento.
Ficaram meus tão queridos
Que ainda hoje trago nos meus recuerdos,
Junto de outras tantas bem querencias
Que me foram acrescidas pela estrada.
Ficou um amor não resolvido
Eternizado em sonetos tolos e ingenuos.

Fui guri plantado à beira do rio
Onde a prata dos lambarís espelhava o ouro sol de verão,
Bailando ágeis sobre as corredeiras 
emolduradas de aguapés e sarandís.
Trago na retina a imagem 
De mal me queres desfolhados,
O doce sabor das frutas silvestres,
A aroma do aniz e da maçanilha
Que compuseram sutil sinfonia,
Dando contorno ás próprias ausencias 
E aconchegando as minhas distancias.

Aos torvelinhos se intercalam na lembrança
lentas imagens da paisagem da querência,
capões de mato enclausurando centenárias casas
onde dormitam amarelados retratos nas paredes
como guardiões de uma história meio bruta
perenizada na dureza dos relatos.
Rios preguiçosos onde se espelham cerros grandes
e costeiros fantasmas perambulam
na boca larga dos causos e das lendas.
Deste cenário eu vim, partido, repartido
ombreando o fado de moldar sonho e destino
ao som longínquo de um clarim em retirada.

Hoje tenho certeza, que não vim de todo

ficou uma parte, partida, vagando
nos campos floridos da infância
talvez por isso, vez por outra
volte a pequena e plácida cidade,
esculpida no alto da coxilha
entre a Serra Geral e o Planalto,
busco elos, peças em falta
no intricado quebra-cabeças
que paciente e perseverante
vou montando ao longo dos dias,
para entender donde vim e pra onde vou.

Me reencontro em parte, aos poucos

quando o disperso imaginário
me transporta em fantasia,
olhar sonhador, plasmado
na frágil e grácil silhueta
da professorinha da escola rural
que serena e mansamente
desfiava contas e contos,
talvez sem se dar conta
de um amor primeiro e singular
que aprisionou-se nos subconsciente dos funções
para renascer ao ensejo de lembranças fugazes.

Por isso à noite quando o sol se põe

e a lua branda se recorta ao céu
dou asas longas a meus devaneios.
Despacito vou me enfurnando "lejo"
no campo largo das reminiscências
onde vagueiam inocentes pirilampos.
Campeio um jeito de volver atrás,
junto coragem pra rever estragos
que cimentaram no caminho andado,
pois, só um rosto numa foto antiga
amarfanhada no desalinho das gavetas
liga o real e o meu faz de conta.

Se eu não voltar para ficar, contudo

viverei poetando esta saudade linda
que acalma a dor e aproxima os longes,
mas, volta e meia, inverterei o rumo
trançando estradas como um peregrino,
buscando imagens, gestos, paisagens
que amenizem o passar dos anos.
Jogarei linhas de espera nos remansos,
irei a escola ver se alguém desfia
contos e contas como antigamente
e ao retomar terei certeza, enfim,
haver encontrado o guri que fui.




2 comentários:

  1. Lissinho,

    que maravilha de poema.

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    Respostas
    1. Poema gaúcho. Quando estive lá em 2010 ouví de um camponês e achei sensacional. Consegui guardar e assim apreciar.

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