Fernando
Gabeira - O Estado de S.Paulo
03 de
agosto de 2012
O mensalão, para os juízes, é um processo de 50 mil
folhas. Para mim, é matéria de memória. Maio de 2005 é um marco na política
brasileira. Mas não um relâmpago em céu azul.
É um marco porque ficou evidente, naquele mês, que
o PT jamais cumpriria uma de suas maiores promessas de campanha: ética na
política. A entrevista do então presidente Lula em Paris, tentando justificar o
mensalão, ainda menciona a responsabilidade ética do partido, mas com uma dose
de convicção tão pequena que entendi como um adeus à bandeira do passado. Eu já
havia deixado o PT e a base do governo em 2003. O escândalo do mensalão foi, no
entanto, uma tomada de consciência popular de que a ética na coalizão do
governo era só propaganda.
O termo mensalão cresceu porque foi bem escolhido.
Roberto Jefferson, ao usá-lo pela primeira vez, não ignorava o apelo popular de
um aumentativo. Na TV, as feiras de carros são anunciadas como feirão, as lojas
de atacado, como atacadão e até os estádios de futebol, Engenhão, Barradão,
Mineirão, seguem o mesmo caminho. Um setor que ainda acreditava nas promessas
do PT se sentiu traído, como se o armário do quarto escondesse um amante:
Ricardão.
Não foi um relâmpago em céu azul. Lula estava
cansado de perder eleições. Decidiu disputar em 2002 com as condições
profissionais dos adversários. Começou aí a necessidade de captar em grande
escala. Programas de TV são dispendiosos. Mulheres grávidas desfilando a
esperança, muitas câmeras, luz, gruas, tudo isso custa dinheiro.
Uma vez no poder, era preciso controlar os aliados,
garantir sua sobrevivência política e, em troca, sua fidelidade. Agora o
dinheiro corria mais fácil.
A primeira tentativa de combater o estrago do
mensalão foi afirmar que jamais existiu com rigor temporal. Não havia
pagamentos mensais, dizia a defesa. Mas que importância legal tem isso? O
dinheiro era distribuído aos líderes dos partidos amigos. O apartamento do
deputado José Janene, do PP, era chamado de pensão pelos deputados que o
frequentavam. Talvez lhes pagasse quinzenalmente. Seria apenas um quinzenão.
Segundo a ex-mulher de Valdemar Costa Neto, em
depoimento na Câmara, ele gastou numa só noite de cassino o equivalente a US$
300 mil. Pode muito bem ter dado o cano nos deputados naquele mês, ou pago
apenas um vale para acalmá-los. Quem jamais saberá?
A segunda tentativa de atenuar os estragos do
mensalão foi o uso da novilíngua: eram apenas sobras de campanha, mero crime
eleitoral. Tão brando que nem poderíamos chamar esse dinheiro de caixa 2, mas
de recursos não contabilizados. Era tanto dinheiro em cena que recursos não
contabilizados não conseguiam explicá-lo. Surgiram, então, empréstimos do Banco
Rural e do BMG. O dinheiro foi emprestado por bancos que não cobram juros nem
acossam devedores. Bancos amigos.
O relatório da CPI indicou com bastante clareza de
onde veio o dinheiro: do Banco do Brasil e da Visanet. Naufragou ali a última
atenuante: o dinheiro do mensalão, num total de R$ 100 milhões, é público.
Lembro-me como se fosse hoje do depoimento de Duda
Mendonça. Ele anunciou a alguns deputados que iria falar. E falou: recebeu
dinheiro do PT no exterior, pouco mais de R$ 10 milhões, que nunca mais
retornariam ao País.
O episódio do mensalão não evitou que Lula vencesse
as eleições em 2006 e, quatro anos mais tarde, elegesse Dilma Rousseff. A força
eleitoral do PT manteve-se e as consequências políticas pareciam neutralizadas.
O dinheiro continuou fluindo em campanhas milionárias e o partido, como os comunistas
italianos, poderia até montar uma sólida estrutura econômica alternativa. Mas
as consequências políticas não morrem tão cedo.
O julgamento do caso vai recolocá-lo na agenda
política. Não acredito que possa modificar o curso das eleições. Será apenas uma
nova dimensão a considerar. Muito se falou que a CPI do Cachoeira iria ofuscar
o julgamento do mensalão. Deve ocorrer o contrário: o julgamento vai conferir
importância à CPI do Cachoeira. A mensagem é simples: mesmo quando não há
consequências políticas imediatas, a corrupção ainda tem toda uma batalha legal
pela frente.
O PT vai se distanciar do mensalão, Dilma também.
Dilma distanciou-se da Delta, de Fernando Cavendish, mas seu governo continua a
irrigar os cofres da empresa fantástica. É compreensível a distância. No caso
do mensalão, ela nos faz crer que todo o mecanismo foi montado pelo cérebro do
ex-ministro José Dirceu, que operava num paraíso de inocentes. No da Delta, a
distância convida-nos a crer que tudo se passou numa obscura seção goiana da
empresa.
Nas paredes de cadeia sempre há esta inscrição:
aqui o filho chora e a mãe não ouve. A mãe do PAC finge que não ouve os choros
da Delta. Grande administradora, não desconfiou que a empresa que mais
trabalhava nas obras do PAC era, na verdade, um antro de picaretagem. Assim
como Lula não sabia que houve o mensalão. Todo aquele dinheiro rolando a partir
da campanha de 2002 era um milagre político. É um senhor que me ajuda, como
diria a mulher bonita vivendo súbita prosperidade. É tudo um tecido de mentiras
que ainda não se rasgou no Brasil. No mensalão era uma agência de publicidade
de Marcos Valério que despejava grandes somas nas contas dos políticos. O nome
dela era DNA. Recentemente, foram as empresas fantasmas da Delta que realizaram
essa tarefa.
Em 2005 ainda havia um mínimo de combatividade
parlamentar para buscar a verdade. Hoje nem com isso podemos contar. O mensalão
arrasta-se como um vírus mutante pela História moderna do Brasil. Mas a
corrupção não é uma fatalidade genética. E o grande equívoco de alguns
marxistas vulgares é supor que ela é um componente natural, insuperável, diante
do qual a única reação sensata é tirar proveito.
Sete anos o Brasil esperou para julgar o mensalão.
Sete anos mais vamos esperar pelo júri da Delta. E mais poderíamos esperar, não
fora para tão longa sede tão curta a vida.
* JORNALISTA
* JORNALISTA
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