sábado, 21 de abril de 2012

A feijoada do tio de Pedro Nava

Conforme crônica aqui postada tempos atrás, comentei sobre a diversidade da obra de Pedro Nava, que de tão rica mais parece uma enciclopédia.O homem sabia de tudo nos mínimos detalhes.
Dentre as milhares de narrativas que me encantaram, passo a descrever a feijoada completa semanal que Pedro participava na casa de seu Tio Heitor Modesto de Almeida, pessoa que muito o influenciou em toda sua vida.
Antes um parênteses:
Segundo Pedro Nava a feijoada é prato legitimamente carioca, tendo sido inventado  na Rua General Câmara, no famoso restaurante G.Lobo, cujo nome se dizia contraído em Globo.”Não se pode dizer que tenha sido uma criação espontânea,pois antes é a evolução venerável de pratos latinos como o cassoulet”francês que é  um ragout de feijão branco com carne de ganso, de pato ou carneiro- que pede panela de grés- cassole- para ser preparado. 
Passando os Pirineus, é ainda com o feijão branco, com toucinho imaculado e com ebúrnea pele de porco que os castelhanos urdem suas judias-à-la bretagne.O nome mesmo mostra que o acepipe veio de fora e das Gálias. Seguindo o caminho das invasões, ele atravessa Tui, Ciudad Rodrigo,Badajos, Huelva- ganha Tavira, Elvas, Guarda e Valença de MInho para espalhar-se por Portugal na forma do guando cozido com carne de porco e paio.Mestre Lobo da Rua General Cãmara, tomou dessa muda européia, plantou e ela pegou aqui no tronco da feijoada-completa-do-hino-nacional.
Suas variantes brasileiras radicam principalmente em usar o feijão mais comum na região e em juntar ao porco outras carnes, miúdos e legumes encontradiços nos locais.. A falação é a mesma, só muda o sotaque. Pernambucana, cearense, piauiense, baiana são sobejamente conhecidas por Pedro Nava por conta dos laços parentescos, a baiana, por exemplo, pela tia de sua mulher, ele diz que tem a suntuosidade de sua rabada,dos anteparos de sua costela de vaca, do seu arco-íris de louro, açafrão,gengibre, cravo e coentro, cebola, salsalho e com seu fogo de artifício- pimenta malagueta curtida no gengibre”.
Sabe Pedro das delícias da feijoada mineira de sua mãe, da paulista de Dona Luisa, e das ecléticas Pernambuco - Minas, ou a do eixo Minas – Rio de Maria do Carmo e José Nabuco. De todas, ele diz que a mais incrível é a ortodoxa-católica-apostólica-romana, a carioca  de G.Lobo-Globo- sacramento este que comungou no cozinha insigne do Tio Heitor.
Vamos á descrição:
“Ele próprio gostava de escolher o feijão mais igual, mais preto,mais no ponto, grãos do mesmo tamanho e do mesmo ônix. Ele mesmo é que comprava o lombo, a carne de peito, a lingüiça e os ingredientes de fumeiro com o que ia compor e orquestrar.A couve mais verde, a farinha mais seca e o torresmo mais escorregadio.Seu grande truque era  cozinhar sem esmagar um só grão e depois de pronto,dividir em dois lotes. Tomava de dois terços e tirava seu caldo, peneirando. Um terço, esse sim! Era amassado, passado,livrado das cascas, apurado e esse caldo grosso é que ia ser novamente misturado aos grãos inteiros. Era assim que sua casa não se via a desonra da feijoada aguada.
Toda a carne fresca, a seca e a do fumeiro, era cozida no caldo mais ralo tirado da primeira porção. Só o lombo era feito sem contato, desobrigado de outro gosto senão o de sua natureza, o da vinha-d’alhos em que dormira e o das rodelas de limão que o guarneciam.
Quando havia uma enfiada de feriados o Sr Modesto preferia preparar de véspera porque, sustentava, a feijoada dormida e entranhada era mais saborosa. Foi ao estro de sua mesa que pus em dia a melhor maneira de degustar a imensa iguaria.
Prato fundo, já se vê, de sopa! Nele se esmagam quatro a cinco pimentas-malaguetas entre verdes e maduras, frescas ou danadas no vinagre. Tiram-se-lhes carocinhos e cascas deixa-se só a linfa viva que é diluída num caldo de um limão.
Esse corrosivo é espalhado em toda a extensão do prato e então farinha á vontade para deixar embeber. Retira-se o excesso que volta para a farinheira. Sobre a crosta que ficou, vai a primeira camada de feijão e mais uma de pouca farinha..
Edifica-se com superposições de couve,de farinha, de feijão, de farinha, das carnes, e gorduras e do respaldo mais espesso cobertura final de farinha.. Espera-se um pouco para os líquidos serem chupados, aspirados, mata-borrados e come-se sem misturar. Sobre o fundo musical e uniforme do feijão, sentem-se os graves do fumeiro, o maestoso do lombo, as harmonias do toucinho e os agudos, os álacres,os relâmpagos e os inesperados do subsolo da pimenta malagueta. E só. Um prato só. É de boa regra não repetir a feijoada completa,porque o bis-como o deboche- é reprovável.
A versatilidade do feijão é que permite a combinação das feijoadas regionais brasileiras a qualquer farinha. A grossa, farinha de pau do Maranhão. A fresca ou torrada. Simples ou com farofa de ovo ou de torresmo, ou dos dois. A farinha de milho seca, na sua pasta de angu, ou na pulverulencia úmida do cuzcuz de sal. Meu tio Modesto aconselhava a de mandioca simples, sem torrar ou então a de sal grosso, folha de cebola miúda, embalada na hora com água fervendo.
E fora disso, só couve. Isso de feijoada completa com arroz, laranja é heresia:o primeiro abranda e a segunda corta o gosto. E este deve ser preservado dentro da exuberância e do exagero da sua natureza barroca. Barroco-eis o termo!. Porque como obra de arte ( e levando em conta que”....Baudelaire avait bien dit que lês odeurs,lês coleurs e les sons se répondent) a Feijoada Completa Nacional está para o gosto, como os redondos de São Francisco de Assis em São João Del Rei, a imobilidade tumultuária dos profetas em Congonhas do Campo e a Ceia de Ataíde, no Colégio do Caraça, estão para os olhos.
Ainda barroco e mais, orquestral e sinfônico, o rei dos pratos brasileiros está para a boca e a língua como, para o ouvido,- as ondulações, os flamboiantes, os deslumbramentos, os adejamentos, a ourivesaria de chuva e o plataresco dos mestres mineiros da música sacra e do Trio em Dó Maior para dois oboés e corninglês- Opus 87 de Ludwig van Beethoven.
Depois da feijoada, assim como depois da orgia, a carne é triste. Não a do prato. A nossa, pecadora. Patriótica ela serve tanto á Unidade Nacional como essa língua assim “dulcíssona e canora” que Portugal nos ofertou.


Obs: Pedro Nava exímio conhecedor da língua portuguesa, versado em francês e latim, nos brinda com expressões que só com auxílio do Aurélio conseguimos entender.
Ele cita André Guide( Journal-1942-1949) para subscrever sua declaração de amor á França, verdadeira pátria da cultura ocidental.
  J’e me sens issu de la culture française:m’y rattache de toutes lês forces de mon coeur et  de mon spirit. J’e ne  puis m’ecarter de cette culture qu’em me perdant de vue e et qu’em cessant de me sentir moi-même”

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