segunda-feira, 14 de maio de 2012

Diferenças culturais -II

Continuação de post anterior.

2- Os professores

A excelência dos professores chineses é 1% inspiração e 99% transpiração. Os próprios oficiais da China admitem que a formação de seus professores não tem nada de especial. É o que acontece depois que o professor sai da faculdade que o transforma, e a metodologia para isso é basicamente a mesma aplicada aos alunos: muito trabalho, monitoramento constante, competição misturada com apoio e um sentimento de coletividade.
Não há nada de especial com a carreira de professor em Xangai. O salário não é exatamente atraente. Nos três primeiros anos de carreira, fica entre 30 e 40 mil yuans por ano, ou algo entre 400 e 500 dólares por mês , o que é perto da metade da renda média do habitante da região.
Nessa fase, muitos professores recorrem a outros trabalhos para complementar a renda. Os melhores podem até dobra-la dando aulas particulares ou em escolas de reforço. Os professores de nível médio recebem praticamente o dobro, 72 mil yuan/ano.
E os professores top recebem 90 mil. Todos esses profissionais ainda podem receber bonificações, decididas por suas escolas, que não chegam a 40% do valor do salário. Grosso modo, o salário do professor vai de 0,5 a 1,5 vezes o PIB per capita de sua região. No Brasil, o salário médio é de 1,4 vezes o PIB per capita nacional. Lá, assim como cá, ninguém se torna professor pelo salário.
Conversei com muitos professores e também com alunos de graduação e mestrado na área de magistério, e as razões apontadas por elas (também na China a maioria dos docentes é do sexo feminino) são parecidas com aquelas mencionadas no Brasil: gostam de lidar com crianças, a carreira é estável, têm professores na família e/ou cresceram admirando a profissão. Os alunos mais ambiciosos não querem ser professores, e quando perguntei a um aluno do curso de magistério, Xu Xiao, 24 anos, o que seu pai achara de sua decisão de carreira, sua resposta foi seca: “sem comentários”.
Os cursos de formação de professores não são muito especiais ou inovadores. Duram quatro anos e sua carga horária é dividida assim: metade do tempo é devotado ao ensino da matéria que o futuro professor ensinará (professor de Matemática estuda Matemática etc.), 20% a 25% do tempo é gasto com matérias gerais (Inglês, Chinês, Política, TI), 20% a 25% com cursos gerais de educação (Pedagogia, Psicologia e didática para ensinar a matéria específica que o futuro professor ensinará) e o restante com disciplinas opcionais. Há três diferenças principais entre a formação dos professores brasileiros e chineses. A primeira é que, na China, a prática de sala de aula se faz muito mais presente do que no Brasil. Ela começa já no segundo ano do curso, quando o futuro professor acompanha aulas em escolas regulares duas vezes por semana durante oito semanas.
Depois, o aluno devota o penúltimo semestre do curso a estágio em uma escola, e no último semestre do curso ele precisa refletir sobre essa experiência e escrever a respeito. No Brasil, apesar desse período de estágio e reflexão estar em lei, ele não costuma ser cumprido com muita seriedade, como apontou pesquisa recente da Fundação Victor Civita. A segunda é que as escolas chinesas são mais pragmáticas e diversificadas na escolha de seus pensadores pedagógicos de referência. Há um esforço constante de se abrir ao mundo e ver o que funciona, e pinçar de cada lugar as melhores idéias. O Brasil ainda é primordialmente construtivista, e Piaget tem influência desproporcional em nossos cursos.
Finalmente, diferimos no papel da ideologia. A propaganda ideológica é explícita na China, e a louvação do país, suas lideranças e seu sistema transparece abertamente nas aulas de política a que os futuros professores são expostos. Mas ela é restrita a esse momento e não contamina as demais áreas, assim como o fato de a China ser oficialmente República Popular da China e ser comandada há décadas por um único partido, o Comunista, não faz com que ninguém se iluda quanto ao fato de o país ser um dos mais capitalistas e menos republicanos do mundo.
No Brasil, a ideologia contamina todas as áreas do saber ministrado nesses cursos, que não pode ser “neutro”. E, ao contrário dos companheiros chineses, os futuros professores brasileiros se convencem dessa pregação e a propalam por livre e espontânea vontade aos seus alunos. As universidades chinesas entregam professores competentes ao mercado escolar; o que os torna excepcionais é o que vem a seguir.
Antes de poder dar aulas, o futuro professor precisa passar por um processo de certificação, através de prova. Isso é assim para todo o país. Em Xangai, o funil continua. O candidato deverá fazer um teste de teoria educacional, escrito, que tem entre 150 e 200 perguntas. Se passar nesse teste, vai para uma entrevista com as autoridades da província. Aliás, não é bem uma entrevista, mas uma prova de fogo. 
Os entrevistadores são funcionários da secretaria da Educação local e escolhem um assunto, dentro da disciplina na qual o candidato se formou, e pedem para que ele prepare uma aula. O candidato tem 50 minutos para prepará-la. Passando por essa fase, ele tem então exame físico e psicológico. Ao final desse processo, ele então está liberado para negociar com uma escola que o contrate.
A maioria dos contratos para novos professores são de apenas um ano. Durante esse ano, o novo professor será acompanhado de perto. Ele precisa submeter ao diretor de sua escola o plano de aula de todas as lições, ou ele será acompanhado em todas as aulas por um professor mais velho ou alguém da direção. Em algumas escolas, ambas as coisas. A liberdade ao professor é uma conquista, não um direito: ela só vem depois de sua competência ser comprovada em sala de aula. Depois desse ano probatório, o professor é então efetivado, normalmente em contratos de três anos que, se renovados, podem chegar a cinco anos. Não há contratos vitalícios ou estabilidade no emprego, ainda que, na prática, muito poucos professores veteranos sejam demitidos.
Parece bastante trabalho, mas o grosso do esforço vem quando o professor é efetivado. Aí ele passa a integrar um “grupo de estudos dos professores”, que é sem dúvida a inovação mais importante da educação chinesa, que está presente em todas as escolas do país, em todos os níveis, até mesmo na educação técnica. Cada professor faz parte de três grupos de estudo. Um com os colegas que ensinam a mesma matéria para a mesma série. Esse se encontra uma vez por semana para preparar as aulas juntos.
O segundo grupo é formado pelos colegas de disciplina de todas as séries da mesma escola. Esse se encontra duas vezes ao mês. O terceiro é formado pelos professores da mesma disciplina e série do seu distrito (Xangai tem 18 distritos, cada um com população média de 1 milhão de pessoas). Esse grupo também se encontra duas vezes por mês.
Nesses dois últimos grupos, o objetivo é compartilhar práticas de ensino de sucesso. As reuniões normalmente têm o formato de aulas abertas, “master class”: os melhores professores da escola (e, no terceiro grupo, do distrito) dão uma aula a todos os seus colegas, como se esses fossem estudantes. Os professores na platéia assistem à aula e depois se dividem em grupos para comenta-la e dar feedback ao professor-mestre.
Somando os três grupos, é um regime exigente e que demanda muito tempo: são duas reuniões por semana, toda semana. A maioria desses encontros leva entre duas e três horas. No primeiro grupo, congregando os professores da mesma série, há um professor-líder, normalmente mais experiente. Esses grupos cumprem algumas funções importantíssimas.
A primeira é de espalhar as boas práticas e fazer com que os professores de uma região conheçam qualquer boa idéia ou inovação praticada por um de seus colegas. Isso faz com que a qualidade da aula ministrada em cada turma seja, efetivamente, a melhor aula disponível em toda a região. E as melhores aulas de cada região são vistas pelos representantes de toda a província, que se encarregarão de espalha-la para todos os outros distritos, através de material didático, artigos ou seminários.
Essa é uma diferença radical em relação à educação brasileira. Apesar de nossas escolas também serem, nominalmente, parte de uma rede, em realidade cada unidade é um universo paralelo, que funciona de acordo com as vontades de seus diretores e professores. Na mesma Goiânia da escola da pancadaria e aluno ensangüentado, que tinha IDEB 1,2 (em uma escala de 0 a 10 que mede a qualidade da escola), havia uma escola com IDEB 7,1, com aulas efervescentes, alunos interessados e professores e diretora comprometidos.
Essas diferenças são da vida, mas o mais incrível é o seguinte: as duas escolas estão separadas por não mais de dez minutos, atendem públicos de perfis semelhantes, fazem parte da mesma rede (a municipal) e seus profissionais ganham o mesmo salário. Sabe quantas vezes o pessoal de uma escola tinha falado com a outra? Zero. Nunca. Uma escola de nível subsaariano é vizinha de uma escola de nível europeu e não se beneficia em nada de todos os anos de aprendizados, esforços e vitórias da escola boa. É vergonhoso. Na China, elas estariam em contato constante, e sua diferença de qualidade certamente seria menor.
A segunda função importante dos grupos de estudo é de controle. De uma forma suave e furtiva, todo professor chinês é constantemente monitorado por seus colegas. Digamos que um professor de Física, por exemplo, não domine bem a segunda lei de Newton e deva ensina-la a seus alunos. O que acontece? No Brasil, depende da boa vontade do professor.
Se for uma pessoa comprometida, vai voltar aos livros para estudar, vai fazer um esforço para procurar outro professor e se aconselhar. Se, pelo contrário, for pessoa menos séria, o professor dará uma má aula sobre o assunto, ou nem o ensinará. O aluno ficará com a lacuna naquele conhecimento pelo resto da vida, ninguém ficará sabendo da deficiência do professor e estamos conversados. Como o professor tem estabilidade no emprego e a maioria dos seres humanos prefere trabalhar menos e se divertir mais, o arranjo institucional estimula a preguiça e o descompromisso.
Na China, o que aconteceria com esse mesmo professor? Se ele decidisse dar um “dane-se” a Newton e não viesse preparado para a reunião de seu grupo na semana em que o assunto seria ensinado, provavelmente sofreria um tremendo embaraço frente a seus colegas. Em último caso, o assunto poderia chegar ao diretor da escola, que poderia rescindir o contrato com o professor ou, dependendo das suas cláusulas, simplesmente não renova-lo. De forma que ou o professor se esforça e aprende ou, no limite, será desligado. Quem sofre com a irresponsabilidade docente é o docente, não o aluno.
A terceira função dos grupos é dar amparo e acolhimento aos professores. Tanto em termos pedagógicos quanto emocionais. Digamos que esse professor que desconhece a segunda lei de Newton seja bem intencionado, volte a estudar o assunto mas, mesmo assim, continue sem muita firmeza em relação ao tema. Ele sabe que será ajudado por pessoas que estão inseridas na mesma realidade que ele, e é provável que pelo menos algum membro do grupo domine melhor o assunto e possa dar dicas de como ensina-lo.
Como o grupo se reúne toda semana, ele vai resolver o problema antes que ele aconteça. Talvez naquela quinzena verá esse assunto debatido e ensinado pelo melhor professor do seu distrito, fazendo com que sua aula deixe de ser mediana e passe a ser muito boa. O professor não precisa recorrer a amigos ou conhecidos ou vasculhar na internet por alguém que ele nunca viu na vida. O exercício da docência, na China, é efetivamente uma tarefa compartilhada, que os professores constroem juntos, um se aproveitando das virtudes do outro, até que todo o sistema convirja para as melhores práticas de cada assunto.
Isso é muito diferente da dinâmica no Brasil e, aliás, na maioria dos países ocidentais, em que cada professor opera por conta própria, sente-se isolado, não tem a quem recorrer em caso de problemas e continuará dando a mesma aula, ano após ano, sem saber que talvez o colega de classe dá uma aula excelente sobre o mesmo assunto.
Suspeito que esse pertencimento e essa vida em grupo, apesar da carga de trabalho adicional que gera, seja a responsável também pela melhor saúde emocional dos professores chineses. No Brasil e outros países ocidentais, são freqüentes os afastamentos de professores por motivo de depressão, estafa, problemas de voz, “síndrome de burnout”.
Esgotamento, enfim. Na China, quando perguntei para professores e diretores sobre o assunto, era como se perguntasse sobre o problema de tsunamis para quem mora a mil quilômetros da costa: eles sabem que existe, já ouviram falar, mas não é algo que lhes afete ou preocupe. Quando o professor chinês tem problemas, sua primeira linha de defesa não é o consultório psiquiátrico, mas a sala dos professores e, depois, o diretor de sua escola.
Outra característica importante do sistema de Xangai diz respeito à carreira do professor. No Brasil, todas as discussões sobre plano de carreira são sobre como tornar a carreira mais atraente e como pagar melhor os professores. A discussão costuma ficar entre os sindicatos, que querem salário mais alto e sem distinção de desempenho docente (todo mundo ganha o mesmo), e alguns políticos reformistas, que querem basear os aumentos salariais ou em critérios que a pesquisa mostra serem irrelevantes para o aprendizado dos alunos – como tempo de profissão ou a realização de cursos de pós-graduação – ou naqueles sobre o qual ainda há dissenso na pesquisa, que é difícil de quantificar e medir e para o qual há intensa oposição na categoria, que são as medidas de desempenho do professor, usualmente medidas pelo aprendizado do aluno em testes. Xangai encontrou uma maneira mais engenhosa.
Dividiu a carreira em apenas três níveis salariais (baixo, médio e top), conforme o mencionado anteriormente, mas fez com que a migração entre os níveis não fosse automática ou estritamente dependente de resultados. Para passar de um nível para outro, o professor é que tem de se candidatar. E para receber a promoção, ele passa por um processo que visa garantir que não apenas faz por merecer o aumento hoje como se compromete a continuar melhorando no futuro. Da seguinte forma: olhando para o presente, o professor passa por entrevistas, sua atividade em aula é observada e a pesquisa que tenha publicado é levada em conta. (Essa pesquisa é composta basicamente de artigos em que o professor reflete sobre a sua prática e compartilha ensinamentos em revistas para o público de educadores na China.
E olhando para o futuro, a promoção vem com uma contrapartida: a carga horária de treinamento à qual o professor se compromete aumenta bastante. Para um professor passar do nível intermediário ao nível superior, por exemplo, sua carga de treinamentos passará de 240 horas para 540, espalhadas em um período de cinco anos.
De forma que uma promoção não é só um reconhecimento pelo trabalho bem feito, mas também uma exigência de que esse trabalho aumente no futuro. E como as promoções são opcionais – o processo precisa começar pelo professor, não pela Secretaria – não há animosidade entre colegas ou negociações coletivas. Se beneficia quem quer. Os níveis de cada professor são públicos para os seus colegas, encorajando uma competição sadia.
Outra competição sadia entre professores é pelos prêmios de qualidade no ensino. Todo os anos a secretaria de Educação de Xangai cria concursos em algumas disciplinas. Para participar, o professor precisa cumprir três requisitos: dar uma aula aberta à comunidade, fazer prova escrita e preparar um plano de aulas. Os vencedores de cada escola são então classificados para concorrer no nível distrital, os vencedores do nível distrital concorrem então no nível de toda a província. Os vencedores da província de Xangai tem seus nomes e feitos amplamente divulgados pela mídia local e se qualificam para concorrer em premiação nacional. 
ualquer vitória repercute sobre a bonificação do professor, de maneira proporcional ao tamanho da área da conquista. É uma maneira engenhosa de fazer com que mesmo os melhores professores continuem querendo se aperfeiçoar, motivando-os com dinheiro e reconhecimento público. Em muitas das escolas que visitei, os prêmios das escolas e de seus professores estavam expostos com destaque, logo no saguão da entrada. É uma fonte de orgulho para alunos, pais e professores.
Até agora, falamos das escolas, alunos e professores, tudo aquilo que é visível a olho nu. O extraordinário esforço feito por todos esses atores remete a duas perguntas cujas respostas não são visíveis.
Primeira: por que esse sistema foi brotar justo na China, uma ditadura comunista que até pouco tempo atrás só produzia produtos de baixa qualidade feitos em regime de semi-escravidão onde, portanto, não havia incentivo econômico e nem político para o florescimento do melhor sistema educacional do mundo? Segunda: além do talento e determinação de professores e alunos nas escolas, quais são as idéias e intenções dos mandarins que estão por trás desse esforço, e quão relevante é o seu papel? São os assuntos dos dois últimos capítulos.

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